São poucos os filmes (e documentários) sobre transformação, especialmente envolvendo alimentação, que me fazem ficar sentada para assistir. Quando meu chefe me falou sobre “Fat, Sick & Nearly Dead” eu, obviamente, nem sabia do que se tratava e confesso que, mesmo depois de me atualizar sobre o enredo, o documentário do australiano Joe Cross não seria minha opção de lazer na TV. Mesmo assim decidi que devia assistir, muito por causa do meu trabalho, mas também para entender a motivação deste cara que conseguiu mudar de vida, mudando radicalmente a alimentação.
Acho realmente inspirador quando as pessoas decidem encarar uma transformação total do estilo de vida. A força de vontade de Joe foi realmente surpreendente: não é qualquer um que consegue mudar completamente seus hábitos alimentares, perder mais de 40kg e adotar um estilo de vida saudável em menos de um ano. E é este tom motivacional que carrega o documentário feito por ele, que conta sua própria experiência e de um outro americano, na batalha por uma vida melhor. O vídeo seria lindo se a história parasse por aqui. O que me assustou em “Fat, Sick & Nearly Dead” é que Joe, um empresário bem sucedido, criou por própria conta e risco, uma dieta baseada em sucos de frutas e vegetais. Só suco. É isto mesmo que você ouviu. Vou tentar argumentar aqui neste texto, porque a causa, na minha humilde opinião, é nobre mas perigosíssima.
Apesar de Joe ressaltar que os 60 dias (sim, 60 dias) de suco foram acompanhados de perto por seu médico (como seu colega americano também fez), este fato não isenta os riscos nutricionais inerentes a esta prática. Primeiro porque Joe não é médico, ou sequer um nutricionista. De onde ele aprendeu que misturar tantas frutas e vegetais poderia fazer bem para a saúde? Sim, ele tem resultados supreendentes, mas vamos pensar com um pouco mais de cautela nisto tudo: para um homem obeso, que tinha o hábito de comer ao menos duas pizzas grandes por dia, e quase nenhuma fruta ou vegetais, este suco, além de reduzir drasticamente sua ingestão calórica diária, lhe ofertava vitaminas e minerais que seu organismo jamais tinha acesso. É claro que sua pele, sua disposição e seu bem estar iam surgir após 60 dias de suco. Mas e depois disto? Ele deveria aprender a se alimentar melhor, comendo um pouco de tudo e iniciando atividades físicas, para que ele não recuperasse todo o peso que perdeu neste enorme sacrifício. Para Joe, que ao meu ver é um cara extremamente teimoso e determinado, a mudança deu certo, mas funcionaria para outros tantos milhões de obesos espalhados pelo mundo?
Eu tratei obesos por muito tempo, em consultório e nos hospitais, e posso afirmar com muita certeza de que esta é uma das doenças de mais difícil controle que uma pessoa pode encarar. O obeso não come porque ele é um desobediente, teimoso ou burro. A obesidade vai muito além da vontade de comer, ou da tendência genética, ela é um distúrbio alimentar gravíssimo, com fortes influências do nosso estado emocional e mental. Joe é das poucas pessoas que já vi enfrentar esta barreira mental com tanta força de vontade (e seu amigo caminhoneiro também), mas ele é um entre muitos, e vender a ideia de que é possível se reeducar com sucos prensados de qualquer vegetal e frutas, na minha cabeça, é um crime. Um crime porque vai ser altamente frustrante para a grande maioria que tentar seguir os passos do autor do documentário e ainda mais criminoso porque esta atitude condena o que nós, nutricionistas e médicos sérios, tentamos fazer com nossos pacientes: a reeducação alimentar.
Sempre preguei que o ato de se alimentar é mais do que, simplesmente, ingerir os macro e micronutrentes essenciais para que nosso organismo funcione. Sim, era desta maneira antes de desenvolvermos características de sociedade e de convivência social. Hoje a alimentação é uma parte MUITO importante da nossa vida social, por isto devemos APRENDER a comer, e não fugir de um evento que vá servir algo que você julga muito calórico. Joe relata que sofreu isto em seu filme: parou de ir a eventos familiares, foi julgado por amigos e condenado por grande parte das pessoas que entrevistou na rua. Tudo bem, ele não liga para a opinião alheia, mas já paramos para pensar o que seria esta restrição para uma pessoa já socialmente prejudicada? Um deprimido, um tímido, um reservado? Estas pessoas sofreriam ainda mais com mais uma exclusão. É assim que Joe pretende salvar o mundo com seus sucos?
Não vou nem começar a discutir aqui os aspectos nutricionais dos sucos que ele elaborou, sem sequer entender de combinação de vitaminas, minerais e sítios de absorção. Este não é meu objetivo. O que me revoltou no documentário de uma hora e meia sobre a batalha de Joe e seu amigo para perder peso não foi nem a qualidade do suco, ou por me surpreender positivamente com sua enorme força de vontade, mas sim pelo descaso com a importância de se reaprender a comer. Enquanto continuarmos procurando soluções rápidas e drásticas para combater nosso peso, estaremos muito longe de entender porque é que cada dia que passa estamos cada vez mais obesos.